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terça-feira, 2 de março de 2010

:: Polícia, Drogas, Ação ::

Por que o filme Tropa de Elite, sobre a guerra entre a polícia e o tráfico no Rio de Janeiro, se tornou um fenômeno antes mesmo de chegar aos cinemas

MARTHA MENDONÇA E NELITO FERNANDES COM RAFAEL PEREIRA E SOLANGE AZEVEDO

O DIRETOR- CIENTISTA
José Padilha, que estudou Física, diz que em seus filmes tenta reproduzir e explicar fenômenos da natureza humana

Quem viu o pirata assistirá à mesma história no cinema. Duas pequenas cenas foram acrescentadas e a parte técnica – cores e som – foi melhorada. A grande diferença, s no entanto, é que Tropa de Elite ganha força na tela grande. E é um filme que vale a pena ver de novo. Tanto que, na zona sul do Rio, há jovens que fazem festas para ver e rever o filme. Alguns decoram diálogos e outros já incorporaram as gírias policiais no vocabulário. Uma delas é “aspira”, que quer dizer aspirante. Como os novatos na corporação sofrem mais, o termo chegou às ruas como sinônimo de otário. No jogo entre Flamengo e Sport, no Maracanã, a expulsão do atacante Souza fez a galera gritar “Zero-um, pede pra sair”, um bordão de Tropa de Elite. Outra expressão já consagrada é “Bota na conta do papa”. Ela se refere ao tempo em que os policiais do Bope foram designados para fazer a segurança de João Paulo II. Quando a tropa matava alguém, atribuía ao pontífice. Durante o desfile de comemoração da Independência, em 7 de setembro, as pessoas na arquibancada aplaudiram os policiais do Bope que estavam na avenida.

Nem todo mundo que assiste ao filme vira torcedor fanático do Bope (leia as opiniões de internautas ). Mas as cenas podem levar muita gente a mudar de opinião sobre o modo como a polícia deve agir. Durante os 90 dias de filmagens, de setembro a dezembro do ano passado, as equipes circularam por cinco favelas cariocas dominadas pelo tráfico. Para o diretor Padilha, uma história marcou essa fase da produção: o encontro entre um policial do Bope e um ex-traficante. Um reconheceu o outro. “Andei dando uns tiros em você!”, disse o policial. A resposta foi: “Mas não acertou, irmão, eu tô aqui!”. A preparação dos atores contou com o ex-integrante do Bope e hoje secretário de Segurança de São Gonçalo, Rio de Janeiro, Paulo Storani. Ele teve a ajuda de policiais civis e militares. Houve aulas de tiro, luta e movimentação. Os atores cantaram hinos da polícia, comeram no chão e nadaram em água gelada. Uma das histórias de bastidores afirma que Wagner Moura, que interpreta o Capitão Nascimento, quebrou o nariz de um oficial durante as filmagens. Quem participou da produção também diz que um dos atores coadjuvantes foi afastado pela psicóloga da equipe porque estava levando tudo a sério demais.

Com a febre despertada por Tropa, surge para o público uma figura desconhecida até pouco tempo atrás. É o diretor José Padilha. Carioca da zona sul, de 39 anos, casado e com um filho, Padilha é neto de um ex-presidente do Flamengo e afilhado do jornalista Mário Filho (que deu nome ao Maracanã). Ele optou pelas ciências exatas inspirado pelo pai, industrial. Quase formado em Física, estudou Administração e chegou a trabalhar em banco. Como cineasta, tem um método peculiar. Diz que faz cinema como quem faz ciência: pega determinado fenômeno da natureza, tenta reproduzi-lo e explicá-lo. Foi assim em sua estréia na telona, em 2002, com o documentário Ônibus 174, sobre a tragédia carioca de dois anos antes. Assombrado com a tragédia que terminou com duas mortes – da vítima e do algoz –, Padilha esforçou-se para mostrar que fenômenos da natureza humana e social levaram um jovem a seqüestrar um ônibus e ameaçar seus passageiros. E em frente às câmeras de um país inteiro. “Poderia fazer um filme moral ou político. Optei pela ciência, pela relação de causalidade”, diz. Arrematou prêmios importantes dentro e fora do Brasil. Cinco anos depois, Padilha é o diretor do momento. Além de conquistar o público, ele está bem cotado entre críticos exigentes.

É o caso de Jean-Claude Bernardet, autor de livros como Cineastas e Imagens do Povo. Ele afirma que Padilha inaugurou um novo tipo de documentário com Ônibus 174: ao reordenar as imagens de televisão, o cineasta conseguiu o impacto de um thriller. Ao mesmo tempo, conseguiu dar significado novo ao que ocorreu dentro do ônibus, por meio de informações e entrevistas. “Quando assisti ao filme, fiquei atônito. É diferente dos filmes descritivos. Padilha sabe criar impasses, colocar a nós todos em xeque”, diz Bernardet. Antes do primeiro longa-metragem, Padilha dirigiu documentários para a TV, um deles para o canal National Geographic. Agora, com Tropa de Elite, cria uma nova linguagem de ficção, com cara de realidade.

Em seu primeiro filme de ficção, Padilha continua interessado nos fenômenos sociais. “Os indivíduos escolhem seus caminhos, mas não são livres. Agem de acordo com as regras que a sociedade impõe”, diz. No filme, ele quer mostrar como o policial de uma corporação que o treina mal, paga mal e não dá nenhuma estrutura atua diante do fato de que sua atividade é arriscada ao extremo. “O resultado é o que o filme mostra: ele se omite, se corrompe ou vai para a guerra. E, se for honesto, também vive uma guerra, só que contra a própria corporação”, afirma.

A crítica dos PMs: “Na trama, o Bope é herói, e a polícia convencional é bandida”

Padilha pode ter chegado a essa conclusão enquanto filmava, mas a idéia já estava na cabeça dos policiais que inspiraram os personagens centrais do filme. Eles são Rodrigo Pimentel e André Batista. O primeiro deu forma ao Capitão Nascimento na pele de Wagner Moura. O segundo virou André Matias e é interpretado por André Ramiro. Pimentel foi da PM do Rio de 1990 a 2001. Atuou como capitão do Bope de 1995 a 2001. Em 2000, deu corajoso depoimento para o documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles, e foi acusado de traidor por setores da PM. Foi o primeiro da corporação a fazer s críticas públicas à polícia, falando de falta de estrutura, corrupção e tortura. Foi perseguido e terminou pedindo baixa. Com Luiz Eduardo Soares e o PM André Batista, escreveu o livro Elite da Tropa, no qual o filme é baseado. Em Tropa de Elite, foi responsável pelos detalhes sobre o longo e polêmico aprendizado no Bope. Na vida real, viveu as angústias do Capitão Nascimento, como a pressão familiar contra uma atividade de alto risco. Pós-graduado em Sociologia, hoje é consultor de segurança. É um dos roteiristas do filme e foi co-produtor de Ônibus 174.

André Batista é negro, nascido em uma família de classe média baixa, que, como seu personagem, foi estudar Direito na PUC. Conheceu a realidade dos jovens da zona sul do Rio, que criticam a polícia, mas consomem as drogas que estimulam o tráfico e a violência. Estava no Bope quando houve a tragédia do ônibus 174, em 2000, e foi o policial que tentou negociar com Sandro do Nascimento. Foi ele quem manteve o seqüestrador calmo, por muitos momentos, e conseguiu a libertação de vários reféns. Quando lançou o livro Elite da Tropa, houve boatos de que sofreria represálias da instituição e que poderia ser preso, o que acabou não acontecendo. Hoje, é capitão da PM do Rio e, além de advogado, é pós-graduado em Políticas Públicas e Segurança pela UFF.

OS PERSONAGENS
Rodrigo Pimental (à esq.) e André Batista, autores do livro que inspirou o filme. Policiais com pós-graduação

O filme movimentou a polícia do Rio de várias formas. Alguns policiais foram chamados para apreender as cópias piratas. Outros, destacados para investigar a origem da pirataria. Um terceiro grupo entrou na Justiça para embargar a exibição, alegando que a obra denigre sua imagem. A sentença saiu na semana passada, e os policiais não conseguiram impedir o lançamento de Tropa. “O filme comete contra a polícia comum a mesma generalização que critica”, diz um policial militar. “Na trama, o Bope é herói, a polícia convencional é bandida. Nem uma coisa é completamente verdade, nem a outra. Existem policiais corruptos no Bope e existem honestos entre os convencionais. É péssimo para a auto-estima do policial convencional honesto, porque ele simplesmente não existe no filme”, diz o PM.

Para o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, o grande mérito de Tropa de Elite é atribuir a devida responsabilidade à classe média e às ONGs sobre a violência e o tráfico de drogas. Beltrame diz que Tropa mostra que segurança não é só uma questão da polícia, mas também da sociedade. “Fica clara a influência do consumidor e dessas entidades na violência. O Rio de Janeiro não fabrica cocaína, mas fabrica muito consumidor. O sujeito vai a uma festinha rave, passa a noite toda cheirando e, na saída, vê que seu carro foi roubado e reclama da violência. Ele não sabe que aquele carro foi roubado para ser vendido na boca de fumo?”, diz o secretário. Para Beltrame, é preciso investigar também as relações entre entidades presentes em morro e os traficantes. “O Estado não consegue subir o morro, é recebido sempre à bala. Como essas pessoas conseguem subir? Que concessões fazem? O que oferecem? Isso precisa ser discutido”, diz.

Desde que Tropa de Elite caiu na mídia antes da hora, o cineasta divide-se entre a finalização do filme, em Los Angeles, e a leitura de jornais e internet, para acompanhar os desdobramentos da pirataria e os comentários sobre a produção. Viu o filme com o governador do Rio, Sérgio Cabral, que lhe disse que faria modificações na PM, a começar pela terceirização da frota e da alimentação. Bateu à porta da casa do ministro da Cultura, Gilberto Gil, quando soube que lá havia uma cópia pirata de seu filme. Escreveu artigo no jornal revoltado com os boatos de que a pirataria era um golpe de marketing. Nem poderia ser. Segundo a Motion Pictures Association (MPA), que reúne os maiores estúdios cinematográficos do planeta, de cada dez DVDs vendidos no Brasil, seis são piratas. “Esse patamar não é aceitável”, diz Antonio Borges Filho, diretor-executivo da Associação Antipirataria Cinema e Música (APCM). “Combater a pirataria no Brasil é importante. Mas é como secar gelo”, diz o advogado Paulo Ciari, membro da Força-Tarefa de Combate à Pirataria da Câmara Americana do Comércio. No caso de Tropa de Elite, a questão é outra: o único modo de ver o filme era recorrendo à pirataria, já que ele nem havia estreado.

Enquanto José Padilha vive a angústia de não saber como será o desempenho do filme nas bilheterias, já prepara o próximo, previsto para estrear no ano que vem. É um documentário sobre a fome. Inspirado nas recentes discussões sobre a existência real da fome no Brasil, ele acompanhou quatro famílias cearenses em suas dificuldades para conseguir comer. É pouco provável que uma obra com essas características se torne um sucesso pirata.


Do estúdio para as ruas e a rede
Pelo menos três cópias ilegais foram feitas dentro de uma das empresas envolvidas na produção do filme

Clique na imagem para ampliá-la

Do estúdio para as ruas e a rede
Nenhum dos 57 policiais de um mesmo batalhão acusados de receber propina de traficantes é oficial




PROVAS
Os suspeitos saem do ônibus detidos. O secretário de Segurança do Rio diz que nenhum policial está sendo protegido
Polícia do Rio de Janeiro fez uma faxina no batalhão de Caxias, na Baixada Fluminense. Quase 10% do efetivo da unidade foi preso na semana passada. Os 57 dos 609 PMs do batalhão são acusados de cobrar propinas que variavam de R$ 2 mil a R$ 3.600, por semana, para não prender traficantes. A faxina, porém, foi restrita ao andar de baixo do batalhão. Entre os presos, não há sequer um oficial. O único graduado a ser punido até agora foi o comandante do batalhão, o tenente-coronel José da Silva Macedo Júnior. A PM afirma que a exoneração de Macedo nada tem a ver com o episódio. Na cúpula, a informação é que Macedo caiu porque o comando da PM considerou inaceitável que ele não soubesse de nada. Deve-se espantar, portanto, que o comando acredite que nenhum oficial daquela unidade também nada soubesse.

Os números da ouvidoria mostram que a PM do Rio tem mão pesada contra os praças, mas alivia os oficiais. Embora não façam patrulhamento nas ruas, os graduados são responsáveis por 26% das denúncias de abuso ou corrupção, mas são apenas 6% dos punidos. A polícia parece não dar ouvido a queixa contra os oficiais: mesmo com 26% das denúncias, só 9% das investigações atingem os policiais de nível maior.

Nas mais de 400 horas de gravação durante a investigação, os policiais diziam que repartiam o dinheiro com superiores. Num dos trechos, um sargento pede para que a propina aumente de R$ 3.500 para R$ 10 mil, e justifica: “Essa parada não fica só com a gente, tem de ratear lá em cima”. Policiais que participaram das investigações disseram a ÉPOCA que os oficiais da unidade pediam R$ 1.000 semanais de cada patrulha que atuava nas ruas. Quem se recusasse a pagar era transferido para serviços internos, onde não é possível conseguir dinheiro.

O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, afirmou que a operação prendeu os policiais contra os quais a polícia tinha provas. “Foi preso quem podia ser preso, quem a gente tinha material para mostrar ao Ministério Público”, diz Beltrame. “Isso não quer dizer que outros não possam ser presos no decorrer da investigação. Se aparecer oficial, vamos prender oficial, se aparecer delegado, vamos prender delegados. Não existe proteção.”
Nelito Fernandes




Fotos: André Valentim/ÉPOCA e Paulo Giandália/Folha Imagem, David Prichard/divulgação, divulgação e Fernando Soutello/Agif/AE

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